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Como processar a raiva e a agressividade
Um diálogo com minhas partes mais sombrias
O mais sábio era sair de cena ao invés de ficar no caos e escalar o conflito que emergiu de uma situação com meu filho. O pai ali do lado pedia pra gente se acalmar. Tudo o que eu conseguia era gritar a cada comportamento provocativo que meu filho intensificava, quanto mais ele insistia, mais nervosa eu ficava.
Reconhecendo que a perda do controle emocional é uma resposta do trauma, e que a simples vontade de ir pra cima da criança não era saudável, preferi sair. Ainda consegui dizer para meu filho “não é sua culpa, não estou saindo por sua causa, mas porque eu preciso dar conta da minha raiva”.
Difícil, mas revelador reconhecer que carregamos emoções tão profundas que pode até dar vergonha de olhar. Por mais que houvesse sim um comportamento inadequado da criança, a parte de responder com uma explosão de raiva é minha, e sabendo dos danos que isso pode causar, cabe a mim cuidar para mudar um padrão de minha criação que não ouso reproduzir, que é a punição batendo. O esposo ficou com o filho, eu saí para cuidar da 'Pa', nome carinhoso que dei à esta parte agressiva que residia em mim.
Com a intenção de deixar a poeira baixar, levei Pa para passear. Chovia forte, peguei um guarda-chuva vermelho e saímos bem grudadinhas ali embaixo. Pa tinha uma expressão assustada, parecia querer chorar, mas não conseguia. Estava entorpecida, congelada, sua mão fria. Seu nervosismo era palpável. Pa tremia. Eu percebia que, por trás da raiva que expressava, havia tristeza e desamparo.
Respirei fundo, coloquei a atenção nas sensações do meu corpo, senti a minha base, os pés pisando no chão, ao mesmo tempo que escutava a chuva e prestava atenção no que se passava ao redor. Pa percebeu que eu estava ali para ampará-la e foi se acalmando. Era hora de quebrar o silêncio. Perguntei:
- O que se passa com você? Me conta.
Pa desabou a chorar. Era um choro de criança, de soluçar. Eu me mantinha ali presente, sem julgar, olhava pra ela, dizia que estava tudo bem chorar.
- O que você está sentindo quando deixa essas lágrimas saírem?
- Um nó na garganta e uma vontade ainda mais forte de chorar.
- Então chora.
Dei um tempo pra ela chorar. Chegamos numa rua movimentada em que precisávamos atravessar. Era notável sua desorientação, nem prestou atenção. Segurei mais forte em sua mão. Atravessamos.
Ela percebeu que me distraí e parou de chorar. Pensei: Tem choro que só consegue sair na presença de outro alguém que consegue amparar. Retornei com plena atenção para ela. Pa voltou a chorar, o nó na garganta apertou ainda mais, agora parecia que iria sufocar. Perguntei:
- Se esse nó na garganta tivesse uma voz, o que está tentando te dizer?
- Não sei… buááááá… não tem voz, não consegue se expressar.
Essa é uma típica resposta do trauma ligado às disfunções de vínculo no primeiro ano de vida. A criança expressa suas necessidades chorando, mamãe ou papai aprendem a ler aquela expressão e, se conseguem atender à necessidade, a criança aos poucos vai aprendendo a se expressar. Quando começa a falar, já tem vocabulário emocional e levará isso para o resto da vida. Nasce em idade pré verbal a crença de que podemos confiar nas pessoas e o mundo é um lugar seguro. Do contrário, a criança, e mais tarde o adulto, sente que tem ameaça ao seu redor o tempo todo, quer que suas necessidades sejam atendidas, mas não quer ou não consegue expressá-las.
Eu sabia que, se Pa tivesse completa confiança em mim, se tivesse a certeza de que eu não iria julgá-la, conseguiria se expressar. Segui:
- Há quanto tempo você está na vida minha vida? E para que precisou entrar?
- Não sei… buááááá… A sensação é de que sempre fui assim…buááááá…
Com genuína curiosidade, comentei:
- Pra mim é difícil acreditar que um bebezinho nasceria com essa raiva e agressividade.
Eu falava com ela em tom calmo e amoroso. Era a primeira vez que eu a via desta forma vulnerável. Eu sentia amor por Pa, que tinha um ar infantil, até ingênuo agora. Eu conseguia sentia sua dor.
- Pense: um bebezinho nasce purinho. Claro que carrega sua bagagem cármica, mas isso demora uns anos a aparecer, talvez quando começa a se formar a personalidade.
- Hum… pode ser. Certamente apareceu quando minha mãe agiu autoritária e agressiva comigo. Falava alto, gritava comigo, com meus irmãos e com meu pai. É possível que o que falei hoje enfurecida para o meu filho contenha algo do que eu mesma escutava quando criança. E, por consequência, do que minha mãe certamente escutou e recebeu da vó, ou do vô. E do que meus avós receberem dos meus tataravós… e assim vai.
- Entendo. E como você diria que uma criança se adapta a um ambiente autoritário e agressivo?
- Aprendi a ficar quieta, me calar. Me vem agora umas lembranças de ser sempre elogiada por outras pessoas: “Nossa! Como a Ana é educada, tão quietinha.” Fui ficando cada vez mais na minha. Isolamento era meu acalento. Não incomodava, falava pouco, era prestativa, ajudava os outros. Enquanto eu agradava, ninguém se incomodava.
- Se essa parte agressiva esteve por todo esse tempo, então são mais de 40 anos guardando essa raiva, que é suprimida, entende? O que teria acontecido se você expressasse essa raiva quando criança?
- Impossível. Minha mãe iria sempre ganhar, pois viria com mais raiva e impulssividade até me calar. Ou eu ia para o quarto chorar.
- Não estamos aqui para fazer qualquer juízo de sua mãe. Ela tem certamente a própria história que justifica porque agiu assim, quem agiu assim com ela, e antes dela, e antes dela... Mas podemos agora olhar apenas para a sua experiência?
- Sim, eu não podia expressar minha raiva naquela época, mas agora eu posso, porque sou maior e tenho autoridade sobre meu filho. Não é algo que eu gosto ou quero. É mais forte do que eu, a voz da autoridade simplesmente me domina. Pelo menos consigo controlar a ponto de não bater nele.
- Sim, eu percebi. Era uma parte que eu ainda não conhecia. Que bom que ela se mostrou, assim você pode transformá-la.
- Outro dia me fiz uma promessa: não jogar minha raiva sobre essa criança que nada tem a ver com as minhas questões. Eu orava: Que eu possa compreender que o comportamento do meu filho só representa os seus traumas. Não é algo contra mim. Que eu possa compreender que as emoções que disparam em mim representam somente o meu trauma, não tem nada a ver com algo que ele fez ou falou pra mim. Quero conseguir acolhê-lo e amá-lo, independente do que ele faz, mas por quem ele é. Faço agora essa escolha. Mas depois, aconteceu essa explosão, e não parecia que eu tinha naquela hora uma escolha. É uma força que toma conta. Nada havia para controlar. Era algo feroz, violento, tinha tanta energia, que eu nem entendia o meu comportamento.
- Sabendo tudo isso que você agora reconhece e que o que seu filho faz ou fala só representa seus próprios traumas, não tem a ver com você, de que outra forma você poderia expressar essa raiva, sem ser despejando sobre ele?
Pa voltou a chorar.
- Parece doer muito o que você experimentou. Isso deve ter doído muito mesmo. Você o agrediu com palavras, e parece que doeu mais em você. Seja lá o que você escutou na sua infância e que agora transmite como mãe, vem de uma profunda dor, né?
O choro foi mudando de tom, não tinha mais o soluçar da criança.
- Você acha que se continuar agindo assim conseguirá um resultado positivo na criação do seu filho?
- Não. Mas não tenho ideia de como mudar. Já tentei várias terapias, coaching, afirmações, rituais espirituais…
Aqui percebi que Pa estava se segurando firme a uma crença ou sendo leal a padrões de seu sistema familiar. Por vezes, repetimos inconscientemente padrões disfuncionais de nossos pais, avós e gente que veio até antes de nós, pois isso gera pertencimento.
Perguntei:
- Se você não agisse mais desta forma agressiva com seu filho, o que você perderia?
- Respeito. Eu só quero que ele me escute e me respeite.
- E está funcionando desta forma? Funcionou com você quando criança?
- Não, claramente que não. Ele agora chega a cantarolar ou tampar os ouvidos quando falo com ele. Lembro que quando minha mãe gritava comigo eu queria fazer o mesmo e sair correndo.
Pa voltou a chorar. Deixei. Só fiquei ali presente. E continuou:
- Esses comportamentos tocam lá na ferida do vínculo e entram em necessidades minhas que não foram atendidas: “me escute, me veja, me entenda.”
- Se você não agisse mais desta forma agressiva com seu filho, quem você seria?
- Uma pessoa mais amorosa, leve, menos rígida, e iria assumir completamente a responsabilidade da maternidade, que é cuidar, acolher, criar conexão e vínculo com ele.
- E quais as chances de ele te ouvir e respeitar se você for assim?
- Muito maiores, claro, eu sei. Só ainda não sei como mudar.
Percebendo a questão do vínculo como a principal chave, perguntei:
- E o que aconteceria se você se conectasse e se vinculasse com ele? É disso que você tem medo?
Mais choro. E agora, aquele de soluçar de novo. Demorou um pouco, Pa estabilizou-se e concluiu:
- Isso é tão desconhecido e apavorante para mim, que dá muito medo. É como se fosse mais seguro hoje não criar esta conexão e vínculo, porque se eu amá-lo, escutá-lo e respeitá-lo como ele é, vou receber amor, escuta e respeito. E isso é tão pouco familiar pra mim, que dá medo. Voltar para o padrão de isolamento parece sempre o lugar mais seguro. E a raiva faz com que as pessoas se afastem, então, é meu lar doce lar.
- Sim, seus mecanismos de adaptação foram o lugar mais seguro quando criança, te ajudaram a sobreviver em um ambiente difícil. Mas, me diz: que tipo de pessoa merece ser amada, escutada, respeitada…?
- Uma pessoa que tem valor?
Pa falou com tom de interrogação, pois parecia difícil tornar esta frase uma afirmação. Respondi:
- Sim. Você sentiria que tem valor por receber amor. E isso iria contra a crença que aprendeu e sustentou ao longo de toda sua vida ligada ao desvalor, a não ser suficiente, não ser digna de ser vista, escutada, respeitada… É mesmo difícil ir contra as crenças que te tornaram leais ao seu sistema familiar, a quem te deu a vida. Mas é essa transformação que vai lhe permitir construir a sua família no amor.
Uau! Agora me dei conta disso. As minhas crenças mais doloridas são as que eu confirmo no meu dia-a-dia. E meu filho veio escancarar isso pra mim. Vem até uma gratidão agora por ele ser o instrumento para eu poder olhar pra tudo isso.
- Com esta nova consciência, você acha que pode fazer novas escolhas?
- Sim. Quero aprender uma forma saudável de dar expressão e vazão para esta raiva e não agrida nem machuque ninguém física, verbal ou emocionalmente. Nunca bati nele, meu Deus, mas o impulso vem.
- E como seria um novo experimento desta nova forma de ser? Tudo bem se não der certo de primeira. É de se esperar cair no padrão antigo. Se cair, levanta, e tenta de novo.
- Hum… Difícil…
- Posso te oferecer uma ideia?
- Sim.
- Lembra dos exercícios de raiva1 que aquele terapeuta indiano passou e você fez um pouco e parou? Dá pra retomar? E colocar um lembrete para ir até os 21 dias como ele sugeriu? E tem o TRE2, que você também pode fazer mais vezes na semana. E isso que você fez hoje, se retirar, quando percebeu que a raiva virou explosividade, parece algo muito bom, pelo menos neste momento, até você conseguir se perceber antes de explodir e segurar o impulso. Isso não significa suprimir, mas talvez encontrar outros canais de vazão da raiva, que não seja na direção do seu filho.
- Me veio também na mente uma imagem de saco de pancada de treino de box. Talvez socar aquela bola de pilates liberando toda essa energia ajude também.
- Faz sentido. Vou experimentar com mais disciplina e consistência dessa vez. Muito obrigada por este papo.
- Eu que agradeço. Foi bom te conhecer desta forma, encontrando a sabedoria que tem por trás deste comportamento.
No caminho de volta pra casa a leveza e a liberdade eram sentidas em cada passo. A chuva estava mais fraca e agora percebíamos mais detalhes da paisagem, corpo leve, paz e calma. Veio na mente uma voz baixinha e disse: Escreve um livro sobre isso! Está bonita esta jornada de integração de trauma. Vai valer a pena contar que não é negando ou suprimindo emoções fortes que impulsionam violência e agressividade, mas reconhecendo que essas forças estão dentro de todos nós, e precisam ser encaradas, sentidas e curadas.
Notas:
1. Lion pose, um exercício da ioga para a glândula tireóide, mas que tem como um dos efeitos a libração da raiva. Veja como fazer aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=RmJJ4T_FG5M ↩︎
2. TRE é a sigla de Tension & Trauma Releasing Exercises. Veja aqui as instruções de um especialista: https://www.youtube.com/watch?v=FeUioDuJjFI ↩︎