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O que o trauma tem a ver com a dificuldade de sair do emprego?

Pedro queria sair do emprego há anos, mas não conseguia. Lembro que chegou na primeira sessão dizendo: “mas como a equipe daria conta sem mim? Se eu lá dando tudo de mim já não damos conta, imagine se eu sair? Seria um abandono!”

Não é surpresa Pedro chegar até mim com um histórico de afastamento por burnout. Conforme ele se investigava, percebia que o problema maior não estava na cultura ou na liderança da empresa que ele confrontava para mudar, mas na resposta de seu próprio sistema nervoso. O real problema estava no passado: o trauma.

Ao invés de investir energia tentando mudar as pessoas e a situação caótica que vivia na empresa, Pedro compreendeu que a mudança precisava antes acontecer dentro dele. E essa mudança de perspectiva influenciou positivamente suas decisões, ações e todas as pessoas envolvidas.

O contexto:
Pedro vinha se sobrecarregando de funções. Estava em cargo executivo de uma diretoria, assumiu um segundo cargo temporariamente quando um colega foi demitido, mas por sua inabilidade de dizer não, foi “dando conta” da demanda até colapsar. Foram seis semanas de afastamento, sendo as duas primeiras sem conseguir se mover da cama. Quando retornou à empresa, ainda em recuperação, seguiu com a tendência de apagar incêndios… Mesmo durante as nossas sessões, desconectar dos chamados no celular era um desafio. Mas valeu o esforço que ele fez para preservar este momento de autocuidado.

Assim, Pedro ilustrou o problema, primeiro com foco na situação externa:

Estou assumindo funções de duas áreas. Daí, chega o diretor da outra área, que sabe que eu sou do tipo que resolve as coisas, e traz mais demandas, consciente de que já estou sobrecarregado. Quero sair de lá, mas quem vai dar conta disso? Sair, significaria também abandonar minha equipe. Isso não seria justo. A quem eles vão recorrer?

Por que a fala acima contém um padrão de trauma?
Se sentindo esgotado, Pedro não conseguia parar e nem ver novas possibilidades. Isso é comum, se ver vítima do sistema. Mas ao ficar sob estresse por tempo prolongado, o cérebro libera hormônios do estresse, como cortisol e adrenalina, que é uma resposta do corpo para lidar com situações de ameaça e ajudar na reação ágil de luta ou fuga. A atividade do sistema límbico aumenta, o que leva a maior ansiedade, irritabilidade e sensibilidade emocional, reduzindo a capacidade de regulação emocional. Ao mesmo tempo, reduz a atividade do córtex pré-frontal, que é responsável pelo pensamento lógico, tomada de decisões e controle dos impulsos. Não há qualquer condição para resolução efetiva de problemas complexos.

O afastamento de Pedro ajudou a reduzir a carga de estresse momentaneamente, mas não atuou sobre a causa do problema, que são padrões de personalidade desenvolvidos lá na infância:

A incapacidade de dizer não
A síndrome do salvador: “ toda solução depende de mim!”
Sem olhar com compaixão para a criança que Pedro foi um dia, compreendendo a razão de ter desenvolvido esse mecanismo de resposta, a mudança de padrão dificilmente ocorre. Ao tocarmos na experiência traumática que Pedro teve com seus pais, compreendemos a estratégia que ele desenvolveu…

Com um pai abusivo, e uma mãe indefesa, ambos emocionalmente desregulados, Pedro se viu responsável pelos problemas dos pais e desejou resolver a vida deles, seja para compensar algo ou para buscar atenção, presença e amor. Ainda criança, ele desenvolveu a condição de salvador e se transformou em um adulto que acredita que é sua responsabilidade resolver os problemas das pessoas.

Ao mesmo tempo, Pedro acredita que se não resolver o problema dos outros está sendo egoísta ou não se percebe útil. É um círculo vicioso! Ao concentrar tanto de sua energia nos outros, deixa de lado suas próprias necessidades, o que afeta sua autoestima.

A resposta do trauma impede que Pedro confie e dê autonomia à sua equipe
Um outro efeito colateral é que o comportamento do salvador tira a força das outras pessoas de lidarem com seus próprios problemas. As pessoas se acostumaram a levar os problemas para Pedro resolver. Na tentativa de salvar todo mundo, sem nem mesmo perceber, ele tratava as pessoas como crianças indefesas e incapazes, assim como ele mesmo se percebeu em sua infância, quando realmente se viu indefeso e incapaz de resolver a vida dos pais.

Porém, não é responsabilidade da criança resolver o problema dos pais, pois isso criaria uma inversão de papéis. Mas foi nessa relação confusa com os pais, de quem Pedro dependia para sobreviver, que toda essa dinâmica se originou e acabou virando uma programação, um script que ele reproduziu de forma inconsciente na dinâmica de suas relações ao longo de toda vida.
"Até que você torne o inconsciente consciente, ele direcionará sua vida e você chamará isso de destino"
(Original: "Solange du das Unbewusste nicht bewusst machst, wird es dein Leben lenken und du wirst es Schicksal nennen.")
Carl Jung

A transição profissional foi possível ao lidar com o trauma
A história de Pedro é mais comum do que se imagina e ressalta alguns aprendizados importantes sobre trauma, pois revelam a origem dos nossos padrões e dores emocionais mais profundas:
Somos seres programados. E a maior parte disso acontece na primeira infância. A realidade pode ter sido difícil e dolorosa, por isso criamos estratégias para evitar enfrentar a realidade. São mecanismos de enfrentamento engenhosos e muito inteligentes, adaptações que nos ajudaram a sobreviver e a nos proteger.
O trauma de desenvolvimento ou relacional acontece quando não há espaço para a criança sentir ou pessoas para acolhê-la na expressão verdadeira de seus sentimentos, além de não ter tido alguém que espelhasse seu valor intrínseco; daí a baixa autoestima.
Por esta programação ser inconsciente, reagimos às coisas por razões que desconhecemos ou não entendemos. Mesmo não querendo mais reproduzir certo padrão, não conseguimos mudar porque esses padrões nos ajudaram a sobreviver, por isso, dá medo quebrá-los. Mas na vida adulta, os padrões derivados do trauma geram sofrimento em vez de nos proteger.
Precisamos descobrir por que reproduzimos certos padrões. Eles são sempre sobre o passado, mas se manifestam no momento presente. Por serem partes de uma criança ferida, é doloroso entrar em contato com eles. Somente quando desenvolvemos compaixão pelo PORQUÊ fazemos o que fazemos, conseguimos mudar.
Se acreditamos que "sinto o que sinto neste momento porque alguém disse ou fez algo" (situação externa), estamos no papel de vítima. Vale a pena desafiar esse lugar investigando: como seus pais sobreviveram sem você até você nascer? A solução pode doer, porque vai nos fazer perder a importância. Mas o contrário disso seria permanecer no papel de vítima. E isso não é útil.
Há muita resistência em compreender o trauma porque as pessoas têm medo da própria dor. Mas a cura acontece quando aceitamos e acolhemos essa dor, ao invés de suprimi-la ou negá-la. Ao processar a dor, conseguimos liberar os mecanismos de adaptação que usamos para nos proteger da dor e estarmos mais presentes para nós mesmos.
"Faça o que fizer, não se desconecte da sua dor. Aceite sua dor e se mantenha vulnerável".
(Original: “Whatever you do, don’t shut off your pain. Accept your pain and remain vulnerable.)
The Tibetan Book of Living and Dying (O livro tibetano do viver e do morrer.)

O que está inconsciente não temos como saber, mas carregamos as consequências e elas se manifestam em nossas relações e reações.
O vazio do trauma, os gatilhos emocionais e como lidar com tudo isso
O escritor e professor A. H. Almaas tem uma teoria chamada “The Theory of Holes” ( teoria dos vazios). Ele diz que nascemos com nosso ‘Eu’ essencial intacto. Para que nossa essência se desenvolva e para que possamos perceber nosso valor e dignidade, precisamos ser espelhados por nosso ambiente (nossos pais). Precisamos ter nossas necessidades emocionais atendidas e alguém que sintonize com elas. Se isto não acontecer, a criança passará a acreditar que a culpa pelos problemas dos pais é dela e cria um senso de desmerecimento, de não ter valor. A criança desenvolve então um buraco, um vazio, que é quando começa a perder a conexão com seu valor essencial. Como estratégia de sobrevivência ou adaptação, ela encontra meios de encobrir este buraco, assim evita o contato com a sensação de incompletude.

Mas quando esta parte incompleta, este vazio é descoberto, ou seja, o buraco da nossa falta de amor aparece - nosso gatilho dispara – e tendemos a culpar a outra pessoa por destapar esse buraco em nós. Ao invés de nos permitirmos experimentar a dor desse vazio, nos defendemos dela. Uma mesma situação externa, se não houvesse o vazio, não iria disparar o gatilho.

Não há nada de errado com o gatilho - faz parte do ser humano. O que importa é tomar consciência quando o gatilho dispara e, daí sim, passamos a ter escolha sobre qual estratégia podemos usar que interrompe um padrão. Você pode atacar com reatividade emocional ou escapar e, assim, perpetuar-se como vítima ou, tomando consciência, acolher a emoção e usá-la como direcionadora para o trabalho de cura da sua criança interior.

Pedro passou a observar cada situação de gatilho emocional: quando o diretor da outra área vinha pedir para assumir mais responsabilidade, quando ele mesmo não conseguia dizer não para um pedido...

A sugestão do médico e professor Dr. Gabor Maté para isso: Quando alguém acionar o próximo gatilho em você, mantenha uma postura de curiosidade: Qual é o buraco? O que é esse vazio? O que foi perdido no passado? O que estou perdendo aqui nesse momento?

Em vez de fazer disso um problema, veja-o como um tesouro a ser explorado, como algo que está aqui para ensinar algo, se estivermos dispostos a aprender.

Do ponto de vista do seu verdadeiro Eu, tudo é uma oportunidade de crescimento. Tudo o que acontece é para nos levar de volta a quem realmente somos.

Pedro descobriu que a situação de seu emprego atual era seu campo de cura. Quando mudou seu padrão, conseguiu pedir demissão, criar espaço para buscar solução. Ele passou a cuidar de sua criança que, lá no passado, ficou ferida e reagia aqui no presente.

Encerro com esse poema que expressa maravilhosamente o que nossa criança interior mais precisa resgatar:
Autenticidade
(Karen Bell)
Autenticidade
é ter a coragem
de permitir sua alma brilhar através de você
da sua maneira única
sem restrições
sem medo
com a plena compreensão
de que este ato de coragem
Irá intimidar certas pessoas
e, por consequência, elas irão te criticar
elas irão te condenar
e irão te julgar
mas isso tudo não terá nada
a ver com você.
Nosso verdadeiro trabalho não é sobre alcançar, obter ou adquirir;
É no se render, no desapegar e no soltar
até a última partícula de indignidade, autocrítica e vergonha;
escavar toda a concepção errada
que bloqueia o brilho do eu autêntico.
E finalmente silenciar a voz que nos conta
a maior mentira que existe:
A mentira de que não temos valor ou somos dignos de amor
exatamente como a gente é.

Original
Authenticity (Karen Bell)
Authenticity
is having the courage
to allow your soul to shine through you
in its own unique way
without restriction
without fear
with the full understanding
that this act of courage
will intimidate certain people
and as a result they will criticize you
they will condemn you
and they will judge you
but none of it will have anything
to do with you.
Our true work is not in achieving, attaining, or acquiring;
It’s in surrendering, letting go and releasing
every last particle of unworthiness, self criticism and shame;
excavating all the misconceptions
that block the authentic self from shining through.
And finally silencing the voice that has been telling us
the biggest lie in existence:
The lie that we are not worthy or loveable
exactly as we are.


Agradeço, Pedro*, por se apresentar forte e vulnerável para entrar em contato com sua dor e relembrar seu valor e quem realmente é em sua autenticidade.

*Nome do cliente modificado para manter confidencialidade.

*Tem muito mais sobre o tema de gatilhos e o poder do autoconhecimento no Podcast Entrelaces ⊶ CONECTANDO IDEIAS ENTRE AS TRAMAS DA REALIDADE ⊷ Disponível em Anchor, Spotify, Googlepodcast, Applepodcast, Amazon Music. Gravei com colegas da Chie Integrates


Referências:

Curso do Dr. Gabor Mate: Compassionate Inquiry – a psychotherapeutic approach
https://compassionateinquiry.com/online-training/

The Theory of Holes
https://www.diamondapproach.org/public-page/theory-holes

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