O que o trauma tem a ver com a dificuldade de mudar ou sair do emprego? 

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Esse texto reflete a história de um cliente, Pedro, mas ele é a voz de muitas outras pessoas que chegam à sessão achando que o problema maior está em uma situação externa vivenciada no momento presente, e, conforme se investigam, percebem que o real problema está no passado: o trauma.   

Ao invés de investir energia tentando mudar a situação externamente, Pedro compreende que a mudança precisa acontecer dentro dele. A partir disso, a mudança de perspectiva e comportamento influencia a situação externa sem esforço.  

O contexto: 

Pedro quer sair do emprego. Ele está sobrecarregado de funções no emprego atual. Ele está se recuperando de um burnout, ainda se sentindo esgotado, deseja sair e buscar uma empresa que interaja melhor com seu propósito e visão de mundo, aproveitando seu potencial além do operacional e constante apagar de incêndio. 

Assim Pedro ilustra o problema - situação externa: 

Estou assumindo tarefas de duas áreas. Daí, chega o diretor da outra área, que sabe que eu sou do tipo que resolve as coisas, e traz mais demandas, consciente de que já estou sobrecarregada. Se eu sair de lá, quem vai dar conta disso? Sair, significaria também abandonar minha equipe. Isso não seria justo. A quem eles vão recorrer? 

Que comportamentos observamos aqui e que derivam de um trauma? 

  • A incapacidade de dizer não. 
  • A síndrome do salvador: “depende de mim a solução!” 

Vamos olhar para a criança que um dia Pedro foi: por algum motivo ou situação, ele desejou resolver a vida de seus pais, seja para compensar algo ou para buscar atenção, presença e amor. A criança desenvolveu a condição de salvadora e se transformou em um adulto que acredita que é sua responsabilidade resolver os problemas das pessoas. E ao mesmo tempo ele acredita que se não resolver o problema dos outros está sendo egoísta ou não se percebe útil. É um círculo vicioso! Ao concentrar tanto de sua energia nos outros, deixa de lado suas próprias necessidades, o que afeta sua autoestima. 

Um outro efeito colateral é que o comportamento do salvador tira a força das outras pessoas de lidarem com seus próprios problemas. Na tentativa de salvar todo mundo, ele acaba tratando as pessoas como crianças indefesas e incapazes, assim como ele mesmo se percebeu em sua infância, quando realmente se viu indefeso e incapaz de resolver a vida dos pais.  

Porém, não é responsabilidade da criança resolver o problema dos pais, pois isso criaria uma inversão de papeis. Mas foi nessa relação confusa com os pais (ou seus cuidadores) que toda essa dinâmica se originou e acabou virando uma programação, um script que a pessoa reproduz de forma inconsciente na dinâmica de suas relações ao longo de toda vida. 

"Até que você torne o inconsciente consciente, ele direcionará sua vida e você chamará isso de destino"
(Original: "Solange du das Unbewusste nicht bewusst machst, wird es dein Leben lenken und du wirst es Schicksal nennen.") 

Carl Jung 

Por que investigar nossos traumas ajuda na transição profissional 

A história de Pedro é mais comum do que se imagina e ressalta alguns aprendizados importantes sobre trauma, pois revelam a origem dos nossos padrões e dores emocionais: 

  • Somos seres programados. E a maior parte disso acontece na primeira infância. A realidade pode ter sido difícil e dolorosa, por isso criamos estratégias para evitar enfrentar a realidade. São mecanismos de enfrentamento engenhosos e muito inteligentes, adaptações que nos ajudaram a sobreviver e a nos proteger.  
  • O trauma de desenvolvimento ou relacional acontece quando não há espaço para a criança sentir ou pessoas para acolhê-la na expressão verdadeira de seus sentimentos. 
  • Por esta programação ser inconsciente, reagimos às coisas por razões que desconhecemos ou não entendemos. Mesmo não querendo mais reproduzir certo padrão, não conseguimos mudar porque esses padrões nos ajudaram a sobreviver, por isso, dá medo quebrá-los. Mas na vida adulta, os padrões derivados do trauma geram sofrimento em vez de nos proteger. 
  • Precisamos descobrir por que reproduzimos certos padrões. Eles são sempre sobre o passado, mas se manifestam no momento presente. Por serem partes de uma criança ferida, é doloroso entrar em contato com eles. Somente quando desenvolvemos compaixão pelo PORQUÊ fazemos o que fazemos, conseguimos mudar. 
  • Se acreditamos que "sinto o que sinto neste momento porque alguém disse ou fez algo" (situação externa), estamos no papel de vítimas. Vale a pena desafiar esse lugar investigando: Como seus pais sobreviveram sem você até você nascer? A solução pode doer, porque vai nos fazer perder a importância. Mas o contrário disso seria permanecer no papel de vítima. E isso não é útil. 

Há muita resistência em compreender o trauma porque as pessoas têm medo da própria dor. Mas a cura acontece quando aceitamos e acolhemos essa dor, ao invés de suprimi-la ou negá-la. Ao processar a dor, conseguimos liberar os mecanismos de adaptação que usamos para nos proteger da dor e estarmos mais presentes para nós mesmos. 

"Faça o que fizer, não desconecte da sua dor. Aceite sua dor e se mantenha vulnerável".
(Original: “Whatever you do, don’t shut off your pain. Accept your pain and remain vulnerable.

The Tibetan Book of Living and Dying (O livro tibetano do viver e do morrer.) 

O que está inconsciente não temos como saber, mas carregamos as consequências e elas se manifestam em nossas relações e reações. 

A importância de reconhecer os gatilhos que se derivam dos nossos padrões 

O escritor e professor A. H. Almaas tem uma teoria chamada “The Theory of Holes” (vou traduzir como a teoria dos buracos, ou dos vazios). Ele diz que nascemos com nosso Eu essencial intacto. Para que nossa essência se desenvolva e para que possamos perceber nosso valor e dignidade, precisamos ser espelhados por nosso ambiente (nossos pais). Precisamos ter nossas necessidades emocionais atendidas e alguém que sintonize com elas. Se isto não acontecer, a criança passará a acreditar que a culpa pelos problemas dos pais é dela e cria um senso de desmerecimento, de não ter valor. A criança desenvolve então um buraco, um vazio, que é quando começa a perder a conexão com seu valor essencial. Como estratégia de sobrevivência ou adaptação, ela encontra meios de encobrir este buraco, assim evita o contato com a sensação de incompletude. 

Mas quando esta parte incompleta, este vazio é descoberto, ou seja, o buraco da nossa falta de amor aparece - nosso gatilho dispara – e tendemos a culpar a outra pessoa por destapar esse buraco em nós. Ao invés de nos permitirmos experimentar a dor desse vazio, nos defendemos dela. Uma mesma situação, externa, se não houvesse o vazio, não iria disparar o gatilho. 

Não há nada de errado com o gatilho - faz parte de ser humano. O que importa é tomar consciência quando o gatilho dispara e, daí sim, passamos a ter escolha sobre qual estratégia podemos usar que interrompe um padrão. Você pode atacar com reatividade emocional ou escapar e, assim, perpetuar-se como vítima ou, tomando consciência, acolher a emoção e usá-la como direcionadora para o trabalho de cura da sua criança interior. 

Quando alguém acionar o próximo gatilho em você, mantenha uma postura de curiosidade: Qual é o buraco? O que é esse vazio? O que foi perdido no passado? O que estou perdendo aqui nesse momento?  

Em vez de fazer disso um problema, veja-o como um tesouro a ser explorado, como algo que está aqui para ensinar algo, se estivermos dispostos a aprender.  

Do ponto de vista do seu verdadeiro Eu, tudo é uma oportunidade de crescimento. Tudo o que acontece é para nos levar de volta a quem realmente somos. 

Encerro com esse poema que expressa maravilhosamente o que nossa criança interior precisa resgatar: 

Autenticidade  
(Karen Bell)  

Autenticidade  
é ter a coragem  
de permitir sua alma brilhar através de você  
da sua maneira única 
sem restrições  
sem medo  
com a plena compreensão 
de que este ato de coragem  
Irá intimidar certas pessoas
e, por consequência, elas irão te criticar
elas irão te condenar 
e irão te julgar  
mas isso tudo não terá nada  
a ver com você.   
Nosso verdadeiro trabalho não é sobre alcançar, obter ou adquirir;  
É no se render, no desapegar e no soltar 
até a última partícula de indignidade, autocrítica e vergonha;
escavar toda a concepção errada 
que bloqueia o brilho do eu autêntico.  
E finalmente silenciar a voz que nos conta  
a maior mentira que existe:  
A mentira de que não temos valor ou somos dignos de amor 
exatamente como a gente é. 

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Original 

Authenticity (Karen Bell) 

Authenticity 
is having the courage 
to allow your soul to shine through you 
in its own unique way 
without restriction 
without fear 
with the full understanding 
that this act of courage 
will intimidate certain people 
and as a result they will criticize you 
they will condemn you 
and they will judge you 
but none of it will have anything 
to do with you. 
Our true work is not in achieving, attaining, or acquiring; 
It’s in surrendering, letting go and releasing 
every last particle of unworthiness, self criticism and shame; 
excavating all the misconceptions 
that block the authentic self from shining through. 
And finally silencing the voice that has been telling us 
the biggest lie in existence: 
The lie that we are not worthy or loveable 
exactly as we are. 

Agradeço, Pedro*, por se apresentar forte e vulnerável para entrar em contato com sua dor e relembrar seu valor e quem realmente é em sua autenticidade. 

*Nome do cliente modificado para manter confidencialidade. 

Referências: 

Curso do Dr. Gabor Mate: Compassionate Inquiry – a psychotherapeutic approach 
https://compassionateinquiry.com/online-training/ 

The Theory of Holes 
https://www.diamondapproach.org/public-page/theory-holes