Celebrando a evolução de uma facilitadora em formação

Por que a dificuldade de dizer não?

Nessa semana tive um ato falho. Disse um sim quando deveria ter dito não. Senti raiva. Enviei um áudio expressando isso, sem muito filtro, um tanto precipitado. Senti culpa. Dormi mal naquela noite.

No dia seguinte, caminhando, pensei em um ensinamento que tinha escutado nas aulas de Tao sobre Yan Hui, um dos discípulos mais agraciados de Confúcio:

“Não deixar a raiva passar de um dia.”

Mas como fazer isso na prática?

Estudando sobre trauma, e o tema deste artigo tem tudo a ver com isso, optei pela alternativa da observação dos sentimentos e emoções, sem julgamento. Por fim, os sentimentos disparados não tinham a ver com situação ou a pessoa em si, mas com a reativação de memórias do passado que não estão integradas em mim e se repetem sempre que tenho dificuldade de dizer NÃO.

Um simples exercício pode ajudar a lidar com a dificuldade de dizer NÃO

Gabor Mate, em seu curso sobre trauma, propõe uma reflexão a partir de 4 perguntas:

1. Onde tenho dificuldade em dizer não?

2. Qual é a história que eu conto a mim mesma sobre porque não digo NÃO?

3. Essa história é verdadeira?

4. Qual é o impacto em mim quando deixo de dizer NÃO?

Há consequências em dizer NÃO, podemos perder amigos e relações, mas há consequências ainda maiores em suprimirmos a nós mesmos, explicava Gabor com sua voz que me conduzia com luz nas profundezas de minhas sombras.

Busquei especificamente esse ato falho para fazer o exercício. Me custava compreender porque eu disse sim, se na verdade tinha razões e argumentos para dizer não. As histórias que eu me contei:

· Vou estar sendo egoísta.

· Sou uma pessoa má dizendo não.

· Ela não vai me perdoar.

· Ela vai ficar com raiva de mim.

· Ela não vai mais gostar de mim e vai comprometer nossa amizade.

· E vou bloquear o caminho dessa pessoa no meu sistema e o meu no dela.

· E, além disso, ela é minha amiga. Nossa amizade estará ameaçada.

· Isso não é justo.

· É querer controlar as coisas.

De onde vem as histórias que nos contamos e que nos impedem de dizer NÃO?

Gabor relembra que, quando crianças, era nossa especialidade dizer NÃO. Bebê não gostou da comida. O que faz? Cospe e vira a cara. Pai manda a criança tomar banho. Ela está brincando e diz o que? NÃO. Por sinal, é uma das primeiras palavras que uma criança aprende a falar. Aprendemos a dizer não antes de aprender a dizer sim. E muitos pais acham essa fase terrível. E nada há de errado com isso, pois é uma fase essencial para o desenvolvimento humano. Mas daí, algo acontece…

A criança tem duas necessidades básicas:

Vínculo (attachment): é a vontade de estar perto de outro ser com o propósito de ser atendido ou cuidado. Até os passarinhos querem estar perto da mãe pássaro ou do pai pássaro, e vice-versa, caso contrário, temem perder a vida. Quanto mais imaturos formos, mais poderoso é esse impulso de criar vínculo. Sem isso, nos sentimos desamparados. Quanto mais dependentes formos, mais vulneráveis ficamos. Sem o mecanismo do vínculo, não vai ter alguém para nos alimentar, proteger e cuidar.

Autenticidade: é a necessidade de estar em contato consigo mesmo. Isso é tão essencial quanto a necessidade de vínculo. Quando os seres humanos viviam na terra há mais de 150 mil anos atrás, viviam na natureza. Imaginem um tigre se aproximando de você. Ele abre a boca e começa a se aproximar. Você vê seus dentes, a boca salivando. Será que nessa hora se perguntaria se o tigre é amigável, se está com fome, ou algo assim? Pararia pra pensar e observar? Quanto tempo sobreviveria assim? Não muito. A sensação instintiva tem que ser ativada imediatamente. Se você não estiver em contato com seus sentimentos, vai morrer. E esse contato com os sentimentos é o que Dr. Gabor nomeia de autenticidade. Auto é o Eu. A palavra “autêntico” remete a estar em contato consigo mesmo, com o seu Eu.

Mas imagina agora uma criança de 2 anos que pede para a mãe que lhe dê biscoitos antes do jantar. A mãe diz: “Não, nada disso! Ou não vai ter fome quando estiver pronto o jantar”. Como acha que a criança se sente ao não receber os biscoitos? Frustrada, talvez comece a fazer birra. Se os pais não souberem como lidar com a raiva da criança, ou não aguentarem a explosão emocional da criança e a colocam de castigo até ela se acalmar, qual a mensagem que a criança recebe? A mensagem para a criança é que se ela ficar zangada, não será aceita, ou amada. E ela expressa sua emoção da forma que consegue, então, não é o ponto aqui atender aos desejos da criança a qualquer momento, mas ajudá-la a expressar suas emoções. Quando a criança recebe com frequência a mensagem de que os pais rejeitam sua expressão de emoção, o que vai fazer com o tempo é criar uma crença que pode ser algo assim: “Para manter o vínculo com meus pais e ser amada, preciso suprimir a minha raiva.” A perda de autenticidade acontece quando a criança dixa de expressar suas emoções mais espontâneas por medo de ser rejeitada. Não é uma questão de escolha nesse contexto. A criança vai sempre escolher o vínculo em detrimento da autenticidade. E isso não é bom nem ruim. É algo necessário por questão de sobrevivência. E essa é a história da infância de quase todos nós.

A dificuldade de dizer NÃO surgiu da necessidade de sobrevivência

Não é uma atitude consciente aos 2 ou 3 anos de idade escolher o vínculo em detrimento da autenticidade, mas de adaptação. “Vou ser quem você quiser que eu seja, assim, serei amada”. Só que isso se torna um mecanismo automático de defesa que fica programado no nosso cérebro e no corpo pelo resto da vida. Por isso, a própria palavra NÃO desperta medo. Por pura auto-proteção, atacamos a nós mesmos quando dizemos sim enquanto queremos dizer NÃO. E daí vem a culpa como uma forma de se manter em equilíbrio.

Por querermos evitar o sentimento de culpa, começamos a dizer sim quando, de fato, queremos dizer NÃO.

O corpo diz NÃO, mas a boca (ou a mente) insiste em dizer sim. O melhor indicador dessa incoerência é a culpa. Se a culpa surgir, não há motivos para evitá-la. É ela que mostra o caminho de possibilidades para a mudança.

As consequências de quem aprende a dizer NÃO

E agora, entendendo as razões de porque tenho dificuldade de dizer NÃO, vamos voltar ao exercício das 4 perguntas. Eu me contei várias histórias do porque evitei dizer NÃO nessa situação. Mas elas são verdadeiras? Não se pode provar de forma lógica que é verdade que alguém que diz NÃO é egoísta, mas pode ser que seja verdade que a pessoa que recebe o NÃO pense isso sobre mim ou se ressinta.

Sim, há consequências em dizer NÃO. Esta tensão entre vínculo e autenticidade é inerente. Como exemplo dessa tensão relembro minha decisão de me mudar para a Alemanha aos 25 anos de idade e meus pais sendo contra por motivos que não convém mencionar aqui. Eu queria ir e minha voz interna gritava a favor. Segui essa voz de autenticidade, mas meus pais pararam de falar comigo por uns 6 meses. Levou um tempo para restaurar esse vínculo e foi doloroso, deixou sequelas. Em idade adulta, consegui perceber que tinha essa escolha e enfrentei as consequências e a dor de perder o vínculo. Mas quando criança, não há essa escolha, até porque, o sistema nervoso de uma criança não está pronto para suportar essa dor. E aqui entra o conceito de trauma. A criança depende totalmente dos cuidados de um adulto, então, congela suas emoções para poder se manter nessa relação,

E daí, me dei conta:

Não saber como dizer NÃO, faz com que os meus “sims” não signifiquem nada. Para podermos dizer sim genuinamente, com autenticidade, temos de ser capazes de dizer NÃO. Essa frase escutei na aula do Gabor Mate e foi como uma flechada no coração. Decidi observar com mais argúcia como andam meus sims e meus nãos.

Nessa situação específica que motivou o artigo, o sim que dei para a amiga, observei que o medo que senti de dizer NÃO (ser autêntica) tinha muito do medo de perder uma amizade (vínculo) que prezo muito. Mas será que é verdade que nossa amizade dependia do meu sim? Eu sei que a pessoa tinha a expectativa do sim, mas o que teria acontecido se eu dissesse um inesperado NÃO?

Gabor sugere ouvirmos mais das nossas conversas internas. Elas vão dar bons indicadores das histórias que estamos nos contando.

Sempre vai chegar o momento em que temos que tomar uma decisão e escolher entre vínculo ou autenticidade. E vamos descobrir quem são nossos verdadeiros amigos. Haverá consequências. Os verdadeiros amigos provavelmente vão dizer: “Que bom te ver assim, colocando limites e se respeitando.” Os não amigos devem dizer algo assim: “Oh! Ela se tornou tão egoísta e arrogante. Não quero mais saber dela”. Talvez algumas pessoas fiquem magoadas, imaginando que estão sendo abandonadas. Mas esse trauma é delas, cabe à elas lidar.

Tentar permanecer no vínculo com alguém às custas da minha autenticidade tem graves consequências, até mesmo o adoecimento. Há pesquisas que indicam uma forte correlação entre doenças autoimunes acontecerem em pessoas que não sabem dizer NÃO.

Gabor orienta a não forçar a si mesmo o mantra: “a partir de agora, devo ser autêntico”. O que fiz e, segundo ele, é o suficiente, é observar a tensão que existe dentro de mim sempre que não sou autêntica. E, na próxima situação de desafio com o NÃO, caso eu desista novamente da autenticidade, que seja um ato consciente, e não automático. E, depois, a dica é seguir observando novamente com consciência o que acontece dentro de nós.

Termino essa reflexão com uma frase de James Baldwin:

“Nem tudo que confrontamos pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja confrontado.”

Que possamos nos confrontar com nossas sombras, levando luz para lugares ainda inexplorados.

[Original: “Not everything that is faced can be changed, but nothing can be changed until it is faced.”]

Referências:

Course with Gabot Mate: „Returning to wholeness — An online course to understanding and integrating trauma (Module 3)

Course with: Foundational Teachings in Collective Trauma (Module 1)

Depressão e Burnout – Como florescer ao invés de se esgotar?

A transição agora é para (re)aprender a sentir

Como se lançar profissionalmente com o que ainda não está pronto

Como sustentar processos de mudança quando o caminho novo é incerto?